Depois da pausa de alguns meses por causa da vida offline, retomo as publicações no blog.
Parte das minhas reflexões desde o ano de 2019, quando intensifiquei a leitura sobre a criação de filhos e o desenvolvimento infantil, foi a questão da disciplina. Talvez você tenha chegado a esse texto digitando no Google “o que a Bíblia fala sobre disciplina de filhos”, ou “o que a Bíblia fala sobre ‘vara’ e o castigo de filhos”, ou ainda “há base bíblica para a aplicação da ‘disciplina positiva’?”. Se você não está familiarizado com o tema, resumo: o conceito central da disciplina positiva é disciplinar uma criança sem o uso de "violência física", usando de firmeza e gentileza.
O tema é amplo e há muita desinformação na internet e nas redes sociais. Entretanto, não entrarei em minúcias tentando aprofundar o tema e as técnicas neste texto. Não teríamos tempo tampouco eu teria a erudição necessária para apresentá-lo com excelência. Restrinjo-me, neste aspecto, a indicar dois livros sobre o assunto que li porque me foram indicados: Disciplina Positiva, de Jane Nelsen; e Disciplina Positiva para crianças de 0 a 3 anos, da mesma autora.
Contudo, ao ler os livros lembrei de uma série de versículos bíblicos no livro de Provérbios que parecem indicar que a correção física, ou seja, bater em criança desobediente, é a disciplina e correção que o Senhor espera de nós enquanto pais.
São estes os versículos: Pv 13:24; 22:15; 23:13-14; 29:15 (ver também Pv 10:13; 22:8; 26:3).
Esse tema ficou martelando na minha cabeça por algum tempo e decidi fazer um estudo morfológico da palavra "vara" no Antigo Testamento. Nos versículos acima a palavra hebraica usada é
shebet. Há uma outra palavra usada na Bíblia que é traduzida como vara:
mateh. Obs.: obviamente a escrita das palavras está transliterada e não nos caracteres originais hebraicos. Como a minha intenção é entender os versículos acima, me detive apenas na palavra
shebet.
De maneira geral, se pudermos organizar em um silogismo o raciocínio dos pais cristãos que justificam criar seus filhos usando da correção física, teremos algo assim:
- A Bíblia defende que se deve bater em criança como forma de disciplina.
- Não bater nos filhos desobedientes é criar com permissividade.
- Bons cidadãos são aqueles que apanharam na infância.
- Se eu não bater em meus filhos estarei desobedecendo e demonstrando infidelidade a Deus.
- Se eu não bater nos meus filhos eu não o ajudarei a desenvolver autocontrole.
- Bater em criança deve ser precedido de repreensão para que a criança entenda por que está apanhando. Se não, é apenas violência injustificada/vingança.
LOGO, devo bater nos meus filhos para criá-los adequadamente segundo a instrução bíblica e a vontade de Deus.
"LOGO" é a conclusão. 1 a 6 são as premissas. Se uma ou mais dessas premissas for negada, a conclusão não é válida.
Alguns pontos que eu elenquei para me guiar nesse estudo:
a) Preciso descobrir se o uso da palavra shebet em Provérbios é figurativo ou literal.
b) Toda verdade é verdade de Deus, como já escreveu o pastor R.C. Sproul citando Santo Agostinho (texto de referência no final). Isto é, o importante é descobrir a verdade dos fatos e da realidade. A fonte da verdade pode ser a Palavra de Deus, mas também pode ser a ciência, os costumes, a filosofia ou, ainda, a cultura. A verdade sempre vai ser imperativa e nunca se contradirá à Bíblia. Se, por um acaso, eu achar algo verdadeiro que está em contradição com a Bíblia, devo me aprofundar no assunto e estudá-lo porque, muito certamente, ou aquela "verdade" não é verdade ou a interpretação que eu estou fazendo da Bíblia está equivocada.
c) Disciplinar um filho é necessário, mas igualmente necessário é descobrir a melhor forma de fazer isso.
d) Mais importante que conformar meu filho a um determinado comportamento é ensiná-lo na instrução e conselho do Senhor, sem irritá-lo (Ef 6:4), ajudando-o a desenvolver o fruto do Espírito, dentre os quais está o domínio próprio (Gl 5:22-23).
Isto posto, vamos ao que eu encontrei.
I. As ocorrências bíblicas
Para consultar as ocorrências da palavra shebet no original hebraico usei a concordância do vocábulo no site www.blueletterbible.org. A versão em inglês consultada foi a King James Version (KJV). Por uma questão de similaridade no método de tradução, a versão usada em português para estas ocorrências foi a Almeida Corrigida Fiel (ACF). Obs.: tanto a KJV quando a ACF traduzem o texto hebraico por equivalência formal e, portanto, são traduções mais literalistas (palavra por palavra). Salvo engano, também usam o mesmo conjunto de manuscritos hebraicos, o texto massorético.
A palavra ocorre 190 vezes no Antigo Testamento, distribuídas em 178 versos. Destas, na ACF, o vocábulo é traduzido 131 vezes como "tribo", 36 como "vara", 10 como "cetro" e 1 como "dardo".
Vê-se, portanto, que ela não tem, majoritariamente, o significado de "vara". O que não surpreende uma vez que um vocábulo pode ter mais de um significado. A própria palavra "vara" possui diversos significados em português (p.ex. pedaço de madeira, vara de pescar, circunscrição judicial, etc). Logo, é o contexto que determinará qual a melhor tradução.
Portanto, para nossa análise é importante se deter nos versículos onde shebet é traduzido como "vara" na ACF.
As 36 ocorrências traduzidas como "vara" são: Êx 21:20; Lv 27:32; 2Sa 7:14; 23:21; 1Cr 11:23; Jó 9:34; 21:9; 37:13; Sl 2:9; 23:4; 74:2; 89:32; Pv 10:13; 13:24; 22:8, 15; 23:13-14; 26:3; 29:15; Is 9:4; 10:5, 15, 24; 11:4; 14:29; 28:27; 30:31; Jr 10:16; Lm 3:1; Ez 20:37; 21:10, 13; 37:19; Mq 5:1; 7:14.
II. O significado e o emprego da palavra
O dicionário Vine, no verbete "Tribo", expõe que shebet traz em seu significado, quando traduzido como "vara" ou "cetro", a ideia de um "símbolo de autoridade nas mãos de um soberano".
A ideia de "símbolo", portanto, nos ajudará a entender se em Provérbios o verbete deve ser interpretado literalmente ou não.
Sendo usada em sentido literal, shebet é um instrumento capaz de matar (Êx 21:20; 2Sa 18:14). Em outros trechos bíblicos, quando o sentido é claramente não é literal o "aplicador da vara" é o próprio Deus (p.ex. 2 Sa 7:14; Jó 21:9) ou então ela tem o significado de expressar a autoridade de alguém (p.ex. Gn 49:10; Jz 5:14).
Sendo, portanto, no sentido literal, um instrumento capaz de matar alguém, se Pv 23:13-14 for entendido literalmente parecerá contradizer Êx 21:20. Em Provérbios pode-se ler: "Não retires a disciplina da criança; pois se a fustigares com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara, e livrarás a sua alma do inferno." ACF
A palavra traduzida aqui por inferno é "sheol", que também pode ser traduzida por "sepultura" (vide tradução da Nova Versão Internacional - NVI).
Se entendemos que na Bíblia não encontramos contradições, podemos deduzir com razoável certeza que Pv 23:13-14 não deve estar usando a palavra literalmente, uma vez que, se estivesse, contradiria Êx 21:20. Inclino-me a entender o uso da palavra como a figura de linguagem "simbologia" em parte pela própria definição do Dicionário Vine. Não há motivo para acreditar que seu uso figurativo seja descartado no restante do livro de Provérbios. A "vara" pode, portanto, ser entendida como um "símbolo de autoridade" quando empregada em Provérbios.
III. Criança?
Outra coisa que chama a atenção é uso da palavra "criança" em Pv 22:15; 23:13 e 29:15.
O termo hebraico usado aqui é na'ar. Essa palavra pode ser traduzida tanto como criança quanto como jovem. Moisés é um na'ar ainda bebê (Êx 2:6). José ainda era na'ar aos 17 anos (Gn 37:2). Para uma discussão mais extensa, ver link ao fim deste artigo.
No livro de Provérbios, logo no início, é estabelecido o objetivo e o público alvo:
"Provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel; para se conhecer a sabedoria e a instrução; para se entenderem, as palavras da prudência. Para se receber a instrução do entendimento, a justiça, o juízo e a eqüidade; para dar aos simples, prudência, e aos MOÇOS, conhecimento e bom siso" Pv 1:1-4 (ACF)
A palavra "moços' em hebraico nos versículos acima é na'ar. Outras traduções vertem o vocábulo como "jovem" (NVI, ARA, NVT).
Ela ainda ocorre outras 6 vezes no livro: 7:7; 20:11; 22:6, 15; 23:13; 29:15. Destes, na ACF, apenas 7:7 é traduzido como moço/jovem. Os outros versos trazem "criança". Obs.: a tradução da Bíblia de Jerusalém também traduz na'ar como "jovem" em Pv 20:11.
Ora, o próprio tradutor entendeu que o livro de Provérbios se direciona a dar sabedoria aos jovens, mas traduz na'ar como criança em Pv 22:15; 23:13 e 29:15. Apesar de ser uma tradução possível e razoável, ela não é a única possibilidade. E dado o próprio direcionamento do livro de Provérbios em 1:4 e a natureza de diversos provérbios neste livro, talvez "jovem" seja não só uma tradução razoável como provável para Pv 22:15; 23:13 e 29:15.
Logo, se, e somente se, esses versículos de Provérbios autorizarem “bater" como método de disciplina, é possível supor que se aplica a jovens e não a crianças.
IV. Correção, disciplina, instrução.
Em Pv 22:15 há a expressão "vara da correção" (ACF, "vara da disciplina" na NVT, NVI e ARA). O termo traduzido como disciplina ou correção aqui é muwcar e ocorre 50 vezes na Bíblia, 30 só no livro de Provérbios: 1:2-3, 7-8; 3:11; 4:1, 13; 5:12, 23; 6:23; 7:22; 8:10, 33; 10:17; 12:1; 13:1, 18, 24; 15:5, 10, 32-33; 16:22; 19:20, 27; 22:15; 23:12-13, 23, 32.
Muwcar pode também ser traduzido como "instrução" - você pode conferir em diversos versículos acima.
Isso implica dizer que essa é outra palavra com possibilidades várias de tradução. Logo, a "vara da correção" ou "vara da disciplina" também pode ser traduzida como "vara da instrução" e, ainda, entendida como "autoridade pra instruir" ou "instruir com autoridade".
V. Estilo literário do livro de Provérbios
Uma coisa que precisa ser dita também sobre este assunto é que o livro de Provérbios não é uma livro de instruções ou de profecias ou mesmo de promessas. São observações gerais acerca da vida em geral. Ditados que tem mais o sentido de "na maioria das vezes, dada esta situação, pessoas que fazem ISSO se saem melhor". Este "ISSO" varia, contudo, de acordo com cada provérbio. Como bem expressou a Bíblia de estudo NVT na sua Introdução ao livro: "No antigo oriente próximo, ditados sábios eram reunidos em livros (como provérbios) a serem consultados sempre que fosse necessário obter orientação em determinada situação. O objetivo dos ditados era conduzir as pessoas a atitudes corretas (...) Um provérbio expressa uma consideração, uma observação ou um conselho popularmente aceito como verdade geral".
A Bíblia de Estudo de Genebra, na sua introdução também informa que o livro de Provérbios "muitas vezes é interpretado de modo equivocado como um livro que contém promessas (...) Apesar de o livro descrever a prosperidade como uma bênção da sabedoria, vários dos benefícios mencionados não passam de observações acerca do transcurso natural dos acontecimentos."
"Provérbios é o lugar primário da 'sabedoria prudencial' - ou seja, aforismos memoráveis que as pessoas podem usar para ajudá-la a fazer escolhas responsáveis na vida. (...) Em hebraico, os provérbios são chamados de meshallin ("figuras de linguagem", "parábolas" ou "ditados especialmente elaborados"). Um provérbio, portanto, é uma expressão breve e específica de uma verdade. Quanto mais breve for uma declaração, haverá menos probabilidade de que ela seja aplicável de forma exata e universal. (...) o provérbio não é uma promessa categórica, sempre aplicável, revestida de aço, mas sim uma verdade mais geral." Entendes o que lês, páginas 278 a 281.
Se um provérbio fosse "sempre aplicável" e "revestido de aço", provérbio como o contido em 22:6 ("Ensine seus filhos no caminho certo, e, mesmo quando envelhecerem, não se desviarão dele.") implicariam dizer que filhos de crentes devotos e que muito bem ensinaram seus filhos jamais apostatariam. Por outro lado, também não haveria esperança para filhos de descrentes virem a pertencer à família da fé.
VI. Conclusão
Após discorrer sobre este assunto e apresentando as evidências e análises escriturísticas acima, podemos chegar a traduções alternativas fielmente embasadas (ou mesmo paráfrases bastante razoáveis que revelam o melhor sentido do texto) para os versículos de Provérbios mais comumente usados para justificar bater em crianças:
Pv 13:24
"Aquele que não faz uso da sua autoridade odeia seu filho, mas aquele que o ama, desde cedo o instrui."
Pv 22:15
"A insensatez está ligada ao coração dos jovens, mas a instrução dada com autoridade a afugentará deles."
Pv 23:13-14
"Não deixe de instruir o jovem; pois usar a tua autoridade não vai matá-lo. Ao usares de autoridade tu livrarás a alma dele da morte."
Pv 29:15
"O jovem que é instruído e corrigido se torna sábio, mas o jovem entregue a si mesmo, envergonha a sua mãe."
Note que não estou dizendo que as traduções bíblicas que temos em mãos estão erradas, mas apresento uma alternativa para estes textos analisados. Uma alternativa que não brota da minha cabeça ou que força uma conclusão, mas que parte da evidência da Escritura e, a partir dela, oferece um outro entendimento.
Um entendimento que tenta oferecer um pouco de alento a pais cristãos devotos que se sentem impelidos a não usar de violência física para corrigir seus filhos, mas que são diuturnamente pressionados para aplicar palmadas, cintos ou chinelos como método de correção.
Não advogo uma criação permissiva. Os pais não devem deixar que a insensatez crie raízes no coração de seus filhos. Tampouco permitir que a criança ou jovem fique entregue a si mesma(o). Que usem, contudo, outros instrumentos que não a violência física: a instrução, a exortação, o exemplo, a orientação.
Onde está o limite da dor física de uma criança? Ela estará se conformando a um comportamento porque entendeu o certo ou porque está com medo da punição? "Ah, mas eu explico antes de bater". Você tem certeza de que a criança entendeu ou ela está com medo da "surra"? Nós, adultos, por vezes não entendemos algo errado? Será que violência nos faria entender certo? Por que com uma criança seria diferente?
Certa vez escutei a seguinte frase de um colega de trabalho: "Se descobríssemos hoje que estamos fazendo algo de maneira errada ou ineficiente há 15 anos, continuaríamos a fazer porque 'sempre fizemos assim?'" Descartaríamos uma forma mais eficiente porque a ineficiência virou costume? Ora, se há uma forma de disciplinar nossos filhos sem recorrer a violência física e que produza bons resultados, por que não usá-la?
Por fim, convém destacar, em relação ao silogismo oferecido no início deste texto: nos propomos aqui a negar as premissas 1, 2 e 4 a partir deste estudo. Acreditamos que resta demonstrado que a conclusão do silogismo não é uma conclusão válida/verdadeira a se extrair da evidência bíblica, como poderia parecer a princípio.
É possível criar sem bater e, ainda assim, seguindo as instruções bíblicas e do Senhor.
Toda verdade é a verdade de Deus
Who are you calling boy?
Imagem: claro!